Elizabeth Keiko Takeshita



Minúcias

- Essa ficha é do tempurá 17?

- É sim, Beth.
- E essa nota é de 10 reais, né?
- Sim, isso mesmo. Estou te dando 10 reais mais 50 centavos pra facilitar o troco.
- Ótimo. Deixa eu ver.... sete, oito... nove, dez. Pronto, tá aqui seu troco. Tá certo?
- Certíssimo.

Beth passou a semana toda preparando a matéria-prima dos 300 tempurás e 150 yakissobas que, juntos, acabariam em oito horas de um único dia. Camarões, frango, legumes, verduras, molho, massa. Tudo seria devorado pela gente faminta que circula aos domingos pela feira de comida e artesanato da Praça da República, centro de São Paulo.

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Dia quente na praça. Ferveção de pessoas, cheiros e músicas. Vozes iam se alternando na fila do caixa da tenda de comida japonesa da Beth. De cada uma das vozes enfileiradas, ela ia adivinhando o nome.

- Oi, Beth.
- Oi... Fulana? é você?
- Sim, sou eu sim.
- E aí, querida. Tudo bem?
- Tudo.
- E o namorado, tá aí?
- Não, ficou em casa.
- Sei... e o que vai ser hoje?
- Um tempurá de legumes.
- Pra comer agora?
- É.
- Aquela cervejinha acompanha?
- Acompanha sim.
- Ok. Pega aqui a fichinha. Tá escrito tempurá 18 nela?
- Sim.
- Sai um tempurá de legumes e uma cerveja!

Elizabeth Keiko Takeshita

Há 26 anos, Beth adivinha aromas, texturas e paisagens. E há 12, desde quando recebeu autorização da prefeitura paulista para ter sua barraca de comida na Praça da República, ela também adivinha nomes de clientes e guarda na memória, pra não perder as contas, o número dos pedidos escrito nas fichas de tempurá e yakissoba. A audição ficou mais sensível depois desses anos todos de responder a vozes sem rosto, e o gosto por lidar com o público a fez apurar a memória e assim chamar os fregueses pelo nome pra estreitar o diálogo com eles. O tato também se aperfeiçoou, e Beth adivinha na ponta dos dedos o valor das notas e moedas com as quais lhe pagam a conta. O engenho sensitivo se estende ao avental com bolsos que ela veste. Em cada abertura coloca notas e moedas de valores distintos. Sabe em qual casulo está cada cifra. Dificilmente erra o troco. Beth não enxerga, mas vê tudo.

Elizabeth Keiko Takeshita

Quente

No dia 9 de agosto de 1984, houve um assalto no supermercado onde Beth trabalhava como gerente. Um policial reagiu, houve tiroteio e uma bala a acertou na cabeça. Beth perdeu a visão por completo. Mas de lá pra cá, o que mudou mesmo na sua vida é que antes, ela diz, como gerente de supermercado, vendia apenas alimentos crus. Agora, como microempresária e dona da própria tenda de comida japonesa, ela vende o alimento pronto e o entrega quente na mão dos clientes que a procuram todo domingo. Beth trabalha no caixa porque essa função lhe cai melhor. Estar perto da panela com óleo fervendo, por exemplo, não seria seguro. Cozinhar é tarefa que coube a Celso, o marido, ao sobrinho e aos outros dois funcionários que trabalham com ela. Mas com exceção do ofício à beira do fogo, Beth faz tudo. Tudo mesmo. Prepara os ingredientes uma semana antes da feira, coordena o trabalho dos ajudantes e multiplica-se a si mesma para cuidar da casa e ainda preparar comida extra que encomendam para eventos.

Na última ponta da sua cadeia produtiva, lá na colheita dos frutos, Beth ainda se encarrega de verificar a satisfação da clientela. Ela orienta os funcionários para que prestem atenção nos pratos dos fregueses. Se sobra comida, ela, com jei- to, pergunta o porquê ao comensal. O trabalho de Beth só termina quando os mesmos clientes voltam no domingo seguinte para comprar sua comida de novo. Eles sempre voltam. Logo, o trabalho de Beth nunca termina.

Elizabeth Keiko Takeshita

Frio

Sete da manhã. O domingo dessa vez é frio. A Kombi estaciona na lateral da Praça da Re- pública e o dia vai começando pesado e cinza por causa da chuva fina que cai. Não importa. Chegaram à praça uma hora e 5 graus Celsius antes porque a entrevista já estava marcada. Celso e o sobrinho abrem o porta-malas da Kombi e vão tirando as ferragens e toldos de dentro do veículo pra começar a instalação da tenda. Beth sentada do lado do motorista usa o boné e os óculos escuros de sempre. O avental já estava posto. Era responder às perguntas e sair dali direto pra lida. Beth esfrega as mãos. Faz frio na Kombi. Gravador ligado. Elizabeth Keiko Takeshita nasceu no dia 5 de setembro de 1960, na capital paulista. Tem dois filhos com o marido Celso. A família já chegou a trabalhar toda junta na tenda, mas os filhos cresceram e buscaram outros caminhos – quando há festas e eventos, os dois ainda ajudam no comércio dos pais. Isso de ter a família em volta é uma alegria palpável para Beth. Celso está sempre pendente dela. Até leva a mulher para jogar boliche com os amigos cegos que ela tem. Ele se diverte com essa história.

Ela também, e ri, e pensando no som da bola de boliche que insistia em ir pela canaleta cada vez que ela a lançava, Beth diz, também rindo, que não nasceu pra ser cega. Os 26 anos de não enxergar já são maioria em sua vida se comparados aos 24 que passou enxergando. Mas Beth é tão dos detalhes que essa dicotomia essencial de claro-escuro já não lhe diz muito respeito. A mulher, ela diz, é minuciosa, não por obrigação, mas por natureza. As minúcias de Beth são grandezas cotidianas. Só ela entende a importância sutil de vender alimentos cozidos e quentes (e não mais crus), capazes de acalentar e apaziguar o vazio de quem, todo domingo, é alimentado por ela. Fome saciada é uma dessas grandiosidades triviais que só a minúcia enxerga.

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Elizabeth Keiko Takeshita