Annita Ferrari
Pelo Avesso
Mulheres sem calcinha levantando a saia pra arejar a bunda e alegrar a massa. Tudo escuro, fumaça, luz estrobo. Hits oitentistas a pico nas caixas de som. Na pista, um gay jovenzinho vestindo apenas cueca apoderou-se do pole e dançou todo puto no mastro para uma plateia 99% heterossexual. Ele sobrou logo. Ninguém estava muito interessado na sua performance andrógina. Mulheres de meia-idade dançavam fazendo trenzinho com as amigas, com os maridos e com os maridos das amigas. No escuro, nenhum pau, peito ou xoxota tem nome ou compromisso. O primeiro show de strip ia começar logo, e o sofá era nossa sala de espera aos fundos da casa de swing. →
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Nele, Annita Ferrari aguardava sua vez de se apresentar – como atração principal da noite, ela seria a última a fazer o show. Falava pouco, a Annita. É econômica – e tinha dor de cabeça. Ainda não estava paramentada para o show, mas a roupa com que viajara da capital paulista à casa de swing em Campinas, no interior, já era um evento: vestido de renda preta curtíssimo, coxas incríveis, seios desses de se espraiar em cima, pele morena, salto 10 transparente, cabelos negros, sombra escura, unhas postiças e um perfume que se mordia a cinco centímetros do pescoço. Sentado ao lado de Annita estava Leandro, seu marido. É ele quem a acompanha nos shows de strip, quem carrega sua mala com roupa e maquiagens, quem a protege dos bêbados sacanas que tentam agarrá-la no palco e quem vai procurar um analgésico para a dor de cabeça dela. É Leandro quem me diz, enquanto Annita vai buscar um energético no bar, que é um cara ciumento e que por isso não assiste aos filmes pornô que a esposa faz, e que aceita o fato porque essa é a profissão dela e ele já a conheceu como atriz pornô, e que a esposa é profissional e faz isso pela grana, não pelo sexo, e que os dois se amam, muito, há cinco anos, e que jamais participariam →

da troca de casais numa casa de swing porque... por isso, porque se amam mesmo. Annita volta do bar com o quarto energético da noite. Uma da manhã. Ela senta outra vez no sofá. Abre o energético. Pssss. Os dois se olham. Ele fala alguma coisa no ouvido dela e ela sorri. A um assento de distância eu observo o casal. Ele e ela estão acostumados àquela rotina, ao sexo, ao corpo nu, ao tesão ensaiado, ao corpo alheio, mas ainda acham estranho que alguém vá a uma casa de swing pra transar corpos que não conhecem. Talvez porque ali, entre os dois, o tesão e o amor sejam de verdade, sem pirotecnias. Naquele sofá com lastros de fluidos humanos e lembranças de putarias, eu, achando que respiraria safadezas, me apaixono por Annita e Leandro, o casal mais conservador da casa de swing. →

Homenagem
Lá em Santarém, no Pará, a mãe da recém-nascida virou-se pro marido e disse: não vamos botar Emanuelle como primeiro nome porque senão a menina vai ficar falada depois. A Emmanuelle que o pai queria homenagear colocando o nome dela na filha era aquela com dois emes e dois éles, personagem famosa de filme erótico dos anos 70. O pai gostava. De filme erótico. E ia colocar o nome sim. Mas achou, por bem, acatar uma exigência meio-termo da esposa: então coloca um outro nome na frente desse. Luna, eles escolheram, acreditando que assim diluiriam rumores e aguariam vaticínios.
Só que não adiantou. Emanuelle (com um eme só) era um oráculo, e Luna ficou falada 18 anos depois, quando virou atriz pornô porque quis. Ela não escondeu de ninguém, muito menos dos pais. O raciocínio era lógico: não dá pra esconder, uma hora alguém vê e conta, então é melhor eu contar antes. Apresentadora de programa de TV erótico, modelo, capa de revista masculina, stripper, tudo isso Luna foi ser. E Luna Emanuelle, veja,
era tão próprio nome pra essas coisas todas... mas ela preferiu vestir-se com um pseudônimo: Annita Ferrari. Annita é famosa hoje. Faz show de strip pelo Brasil todo, já foi capa de revista 18 vezes e fez 378 filmes (até setembro de 2010). Ela conta, registra e arquiva tudo. Como produto de sua fama, Annita é sempre a atração principal dos filmes e shows e costuma ter a primazia de escolher os homens com quem contracena – esta última é uma grande vantagem, segundo ela, porque é grande o número de atores escrotos que, em cena, tratam com brutalidade as colegas. E como subproduto da fama, Annita Ferrari recebe olhares oblíquos de quem a conhece em cena e pensa que na vida real ela faz sexo full-time. Outro subproduto são as contas de Twitter fake criadas por anônimos. As contas @ferrariannita e @ anitaferrari (com um só ene) são falsas. Falsos também são os gemidos e o tesão que ela sente em cena. Ou você algum dia pensou que as acrobacias e gritos e ereções eternas de filme pornô tinham alguma autenticidade? Simulação, muito gel e Viagra. Tudo circo pra fazer o sexo ultrapassar a tela e ir reverberar entre as suas pernas. Annita mesmo não sente nada. E quando ela chega em casa, exausta depois de um dia todo de →
trabalho, não tem vontade de transar com o marido. Leandro entende. De novo, o sexo entre eles não é pirotécnico. Nem fake. Verdadeira nessa história é a conta @annitaferrari (com dois enes), com mais de 1500 seguidores, o gosto da atriz por filmes de terror e drama, de livros da Danielle Steel e Sidney Sheldon e por café preto; verdadei- ro é o fato que Annita quer ganhar de ani- versário uma câmera fotográfica digital, que já está se cansando de fazer filmes, que não é ninfomaníaca e que quando lhe perguntam se é ninfomaníaca ela emputece – porra, sexo é profissão, não tara. A verdade que importa na carreira pesada da atriz pornô (pesada porque só quem tem uma cabeça forte é que aguenta estar ali sem chorar nem se arrepender) é que a grana que ganha fazendo os filmes é a única justificativa para Luna ser Annita. Annita nunca se arrependeu, e só chorou uma vez na filmagem durante toda sua carreira – e não foi de remorso, mas de dor física, porque a vela usada em cena queimou sua pele. →

Sem edição
Annita caminha de um extremo a outro nas respostas que dá. Mistura sexo e famí- lia, pornô e fidelidade, marido e assédio, deus e tesão nas mesmas sentenças e com a mesma entonação séria e firme. Não que ela não pudesse percorrer esses assuntos simultaneamente, não que fossem incom- patíveis, e não que ela devesse falar em falsete em assuntos da carne e com a voz empostada em temas de amor e do espíri- to. Mas é que esse movimento direto entre uma esfera e outra, sem edição de fala e entonação, deixa Annita exposta ao inter- locutor, mais pelada que nos filmes. E só fica pelado em público quem se garante. Não tenho nada pra esconder de ninguém. Se a pessoa vem perguntar se eu sou a atriz que faz pornô eu digo que sim, que sou eu mesma. Se a pessoa confunde as coisas eu vou logo colocando ela no lugar.
Leandro e Annita se conheceram por acaso, numa lan house que frequentavam quando seus respectivos computadores encontravam-se quebrados. Ficaram amigos primeiro. Depois namorados.
Annita – que pra ele era só Luna – não bancou a verdade sem edição logo de cara. Não disse ao namorado o que fazia, entrou num dilema, achou que se ele soubesse não a aceitaria e, antes de receber um não, deu ela mesma a negativa: resolveu terminar o namoro de oito meses antes que ele desco- brisse. Leandro, comerciante que nada tinha a ver com a indústria pornô e que sequer gostava (até hoje não gosta) de filmes de sexo explícito, não queria deixá-la. Vivia insistindo pra voltar. Um amigo seu comentou com ele algo sobre sua namorada, a Annita Ferrari, meu, você tá na- morando a Annita Ferrari! Annita Ferrari? Que Annita Ferrari? – perguntou Leandro. E o amigo, desses da onça, que fazem o serviço completo, levou Leandro até a banca de jornal mais próxima e, lá, pescou uma fotonovela erótica estrelada por Luna Emannuele / Annita Ferrari. O tempo fechou. Mais de uma vez, inclusive. Idas e vindas. O motivo era (é) o mesmo sempre. O filme. O corpo nu. O assédio. O sexo com outra(s) pessoa(s) – mesmo sendo pela grana, mesmo sendo sexo-profissional. Mas não houve jeito. Não tem, na verdade. Estão casados até hoje, quatro anos – cinco, se forem somados os períodos de reconciliação após rupturas. Leandro sonha que a →

esposa vai largar os filmes... e os shows. Ela também sonha assim. Quer abrir uma loja de sapatos. E, quem sabe, adotar um filho, porque tem tanta criança que precisa, e fazer um filho pra botar aqui não dá.
Dissoluto
Na noite do show na casa de swing em Campinas, Annita aproximou-se de um homem da plateia e começou a brincar com ele, a roçar seu corpo no dele, a provocá-lo. Faz parte. Todo show é assim. Mas como todo bêbado inconveniente, o homem passou da medida: mordeu a cintura de Annita. Ela ficou moita. Esquivou-se. Dançou. Fez o show. Na saída da casa, às quatro da manhã, já a caminho do carro, ela pôs a mão na cintura e reclamou em voz alta que aquele idiota me deu uma mordida e tá doendo até agora. Leandro estacionou o passo no mesmo instante. Quem foi? Quem foi, me fala quem foi que eu vou lá falar com ele. Pra quê, Leandro? – perguntou Annita. Deixa disso, não vou te falar, vamos embora. Leandro tem cerca de 1,70m de altura, mas é forte, muito forte, e tem uma certa habilidade pra encerrar brigas com uma só cabeçada no nariz do →
adversário. Quem foi? Me fala! Annita não disse nada. Guardou as malas no carro, entrou (Leandro no banco do carona, ele não dirige), deu a partida e pegou a estrada a caminho de São Paulo. Houve um mal-estar ali. Leandro reclamou, maldisse caras como aquele, bêbado filho-da-puta. Silêncio. Mais silêncio. Revide. Você estava olhando pra Fulana, Leandro? Leandro, indignado: eu? Olhando pra Fulana? Tá doida, Annita? Não tava olhando pra ninguém. Annita, me olhando pelo retrovisor: acho engraçado isso, ele nunca tá olhando pra ninguém. Eu vi que tava, é só dizer que sim, não tem problema. Leandro, acendendo um cigarro: ai, meu deus...
Silêncio de novo. Annita aperta o play do som e Michael Jackson amaina os humores. Desde o banco do passageiro eu assisto à breve querela do casal. A casa de swing ficara pra trás havia apenas um minuto, e era como se Annita jamais tivesse feito um strip lá, ou em qualquer lugar, e como se Leandro não a tivesse visto dançar nua diante de outros homens e se insinuar pra eles; era como se os dois não pertencessem ao ambiente dissoluto e secreto de uma casa feita para ânimos putos.
E eles não pertenciam mesmo, apesar das evidências. Você viu como a gente é doido?, Annita me pergunta. Os dois riem, e fazem planos de jantar juntos naquela madrugada.
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