Monica Rizzolli



Inominável

Criar é inominável. E a criatura tem equivalência de poderes com seu criador. Chegar nesse postulado não é de hoje, mas de duas décadas, quando tudo ainda era intuitivo e bruto. Aos 11 anos de idade, Monica Rizzolli desenhava porque sim, porque gostava, até descobrir, dois anos depois, os livros de arte e teoria do bisavô pintor e visitar o ateliê de um tio-avô. Foram dois momentos claros, o primeiro aos 11 anos (gostava de desenhar), e o segundo aos 13 (começava a estudar desenho). E tanto um quanto outro movimento jamais sairiam de dentro de Monica. Sua força motriz criadora submeteria a técnica, e sua técnica se abandonaria aos apelos da força motriz criadora. Por isso criar é inominável.

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Queda

Uma necessidade da água, do líquido como símbolo, material e mito. Não foi Monica quem escolheu seu objeto de inspiração para a nova série de desenhos, chamada Queda, que passou meses produzindo. Foi bem mais o objeto que se instalou nela e foi lhe pedindo contrapartidas que o fizessem crescer. Monica o atendeu e foi beber Água Viva, da escritora Clarice Lispector; A água e os sonhos, do filósofo e poeta Gaston Bachelard; a série A imitação da água, da artista plástica Sandra Cinto. Com isso já criava uma certa obsessão salutar pelo líquido que buscava absorver e devolver à realidade transfigurado pela arte.

Talvez (e é bem provável) que seja assim a criação nos seus primórdios: existem reminiscências de histórias passadas – lembranças de cheiros, cores, sensações, sons e vivências – que fazem um determinado tema emergir com força no artista. As necessidades metafísicas da vida presente, então, insistem para que o tema fique, se aloje e frutifique, porque a partir dele o futuro será mais completo.

Monica Rizzolli

Pouco a pouco a vida vai se tornando água. Os olhos ficam tão sensíveis ao objeto que veem referências à água em tudo, e quando não veem, buscam onde há, dos livros aos filmes e às conversas despretensiosas das pessoas na rua. A procura é tanta que olhos se liquefazem eles mesmos, e a artista, farejando a obra que se desenvolve com sua ajuda e à sua revelia, coloca-se na mira do objeto.

Submersa

Monica Rizzolli queria nadar no mar Mediterrâneo. Em Anacapri, comuna italiana na ilha de Capri, foi à praia do Forte. Hesitou quando viu a rebentação violenta das águas no rochedo. Como num desses cenários oníricos, a violência do mar fazia contraste com a segurança de uma escada de piscina instalada à beira do rochedo por onde os banhistas podiam sair da água. E nesse mesmo cenário onírico, um senhor poliglota apareceu e lhe ofereceu, em português, ajuda para descer ao mar e explicar-lhe o ciclo da água.

Eu mergulhei, foi tranquilo. Dois minutos depois, o senhor disse que já era hora de sair. Me disse para ir em direção à escada e que ele me avisaria quando fosse a hora de sair. A escada estava a menos de dois metros de distância de mim, mas cada vez que eu tentava alcançá-la, a correnteza me puxava para trás. O senhor me dizia: não é a hora ainda. Eu fui ficando com medo, desesperada. Entrei num estado de irracionalidade completa. Pensei que fosse afundar e nunca mais sair daquele lugar. Foi a distância

Monica Rizzolli

mais longa da minha vida. Foi um mergulho dentro de mim, do meu inconsciente. Quando consegui sair, tremia muito. O senhor se aproximou e disse: hoje você viveu a experiência da profundidade. Aquilo me marcou imensamente. Monica não quer transformar essa vivência numa imagem específica, mas a experiência é força motriz no processo de criação. Como falar de imersão sem estar dentro d'água?

Superfície

Na volta à superfície, o desprendimento das referências, bibliografias, imagens e experiências acumuladas é necessário. Para falar de água, é preciso estar seca, do contrário, repete-se a referência e nada novo é gerado. No final ato criativo de Monica Rizzolli, importa mais o gesto que o objeto. Quando você vai criar uma imagem, não pode impor a sua vontade na construção dela. Se você predetermina como ela vai ser, essa predeterminação é o que você já conhece, é o compreendido e visto. Para que a imagem seja nova e fale de algo que vá além do racional e consciente, ela tem que se construir por si mesma. Só há um primeiro momento racional: a definição dos pesos e massas gerais que constituirão o desenho completo. A partir disso, nada mais preocupa a artista. As cores, padronagens e detalhes de cada desenho não serão fruto da sua oferta, mas da demanda da própria obra. Acredite: as imagens pedem as cores que querem, os traços, a vida que desejam. Depois de trilhada a rota, você pode se perder à vontade porque sempre vai voltar para o seu eixo.

Monica Rizzolli

Escafandro

Disciplina é escafandro. Sem ela, Monica se afoga na própria profusão de ideias. A série Queda foi um trabalho diário, de meses. Como regra que ela mesma se impõe, tem que ser operária, acordar cedo, almoçar certo, trabalhar, café da tarde, casa, descanso. Assim produz. Treina o corpo e diz à mente que há algumas coisas a serem aprendidas, pois seu raciocínio lógico e claro é desses que se forjam com método. Monica desenha, fotografa e cataloga padronagens da paisa- gem urbana de São Paulo; na rua, observa as pessoas, as relações humanas e as camadas de História sobrepostas em construções erguidas sobre outras mais antigas. Esteve na China em 2010 e lá comprou um caderno de anotações que, segundo a escrita chinesa, é usado da direita para a esquerda. Sempre foi muito crítica para verbalizar o próprio pensamento e escrever. E a base de treino para limar a dificuldade foi o caderno chinês. Monica escreve, mas por causa da posição da mão no caderno não consegue ler o que escreve. Isso me deu distanciamento suficiente para escrever tudo o que me vem à cabeça. É a primeira vez que consigo manter

uma escrita constante. É um caderno que só funciona se você coloca no espelho. No espelho, a vida ao contrário e com sentido é metáfora para a (re)criação da realidade. Monica faz levantar o caderno diante da lâmina refletora e decifrar o pensamento que leva em si e aos poucos conhece. Outra vez, é a demanda quem determina a criação, e Monica é fonte e instrumento da arte que brota com seu consentimento – embora bem mais à sua revelia.

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Monica Rizzolli