Céline Imbert



A Voz Humana

De dentro da boca sai uma beleza. Começa na respiração, a ação vital mais ordinária e primeva. O diafragma movimenta-se, contrai e relaxa para orientar os caminhos do ar no interior de cavidades obscuras. A boca pressente o som correndo as cordas vocais e faz o movimento que melhor o ampara e projeta, respeitando o ritmo e harmonia que o elevam ao patamar da música – o som tem hierarquia. A boca abre, fecha, semifecha num círculo perfeito. A língua tem que saber seu lugar para não arruinar a propagação da música. A beleza que sai da boca reverbera e cessa. Para onde ela vai? Depende de quantos ouvidos atinge.

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O som que entra no corpo alheio se expande por dentro dele, como essas munições poderosas que perfuram a epiderme e percorrem e dilaceram e matam os tecidos internos. A beleza do som que sai da boca do cantor, veja que raro, é protagonista, não coadjuvante. É ela quem vai buscar a beleza que existe no silêncio de quem a ouve. A beleza pode até estar muda também, mas sua lembrança no sentimento do ouvinte, feito a tal munição poderosa – só que ao contrário – ressuscita seus tecidos interiores e o torna maior, mais belo, mais deus.

Céline Imbert deflagrou muitas dessas belezas e resvalou na porção divina de muita gente. Sua voz de soprano já foi a voz de Carmen, Soror Angélica, Tosca e Capitu. Está acostumada às óperas grandiosas, as de montagens rebuscadas, teatros municipais, figurinos de época, orquestra, maestro, coro, músicos, libreto; está habituada à disciplina ferrenha de estudo e ensaios e até ao sono interrompido por tentativas do próprio cérebro de continuar ensaiando as músicas durante o descanso. Céline não se acostuma, contudo (apesar das décadas de canto), à realidade da criação e propagação da música em si mesma.

Céline Imbert

Porque um pianista, por exemplo, quando toca o piano, decifra pela partitura a tecla a apertar – e assim faz o violinista com as cordas e o baterista com as baquetas. A voz do cantor, por sua vez, não possui teclas ou outro disparador externo do som. E mesmo as cordas que existem nele, as vocais, estão invisíveis e impalpáveis no momento da criação da música. Dominar o som é dominar as sensações musculares provocadas pelo ar que anda no corpo. O cantor é um mistério para si mesmo.

Céline Imbert

Epifanias

A soprano Céline Imbert tem uma sala em seu apartamento, no centro da capital paulista, a partir de onde ajuda a concretizar pequenas epifanias diárias. Não tem mais que cinco metros por quatro, a sala, mas ali as pessoas engradecem e ocupam todo o espaço disponível, vazando janela afora quando necessário. Na sala, Céline forja caminhos vocais para seus alunos de canto. Assim como eles se realizam descobrindo em si o som de que são capazes, também ela engrandece quando atua como alavanca dessa descoberta. Do lado de fora do cômodo das epifanias, ruídos mais baixos da hierarquia sonora com- petem com a música da voz da cantora e de seus alunos: buzinas, rojões, gritos de torcedores em dia de jogo, palavrões berrados, escapamento de moto e um ininterrupto ronronar – gordo, quente e difuso – que é o som ambiente de São Paulo. A sala não tem isolamento acústico, mas a música busca sempre um jeito de se impor.

Do lado de dentro do prédio ninguém reclama do que ouve vindo do lado de dentro do apartamento de Céline. A moradora ilustre está ali há mais de duas décadas e jamais recebeu uma queixa. Quando muito, esbarram com ela pelas áreas comuns do edifício e lhe resumem seu próprio dia: “poxa, a senhora cantou bastante hoje, hein?”, ou “ué, a senhora não cantou hoje?”.

Se eles soubessem que vias percorrem e quais câmbios operam os sons que lhes chegam pelas frestas das portas e janelas... “O estudo de canto é um caminho. A pessoa se deslumbra com o próprio som que tem. Aqui (na sala) acontecem transformações num nível de ampliação dos próprios limites. A pessoa precisa ter coragem de fazer um som – e acaba levando um susto quando consegue. Precisa ter determinação e disciplina, porque conse- guir emiti-lo com perfeição leva tempo e é preciso tentar muitas vezes. Com isso, a pessoa vai mudando a forma de se ver, sua autoestima se amplia e ela leva isso pra vida, se sente maior e mais fortalecida. A pessoa toma consciência de coisas que ninguém imagina. Da sua úvula, por exemplo. Quem sabe o que é a úvula?

Céline Imbert

É o sininho (na garganta). O som se processa atrás dele. É uma coisa louca, você sente o som andando em você”. Quem citaria a úvula no processo de criação da beleza senão quem reconhece nela (na própria úvula) sua parcela de responsabilidade e mérito? Céline Imbert, de fato, não se acostuma ao mistério da voz humana feito música. E isso porque é próprio da beleza que flerta com o divino, a surpresa de quem presencia um novo milagre por dia.

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