Clarice Berto



Meu Bar, Meus Amores

Clarice também se chamava Maria Josefa e Natalina. Mais amiúde Clarice, porque assim foi registrada em cartório em homenagem à xará famosa, escritora de sobrenome Lispector e que a precedeu no mundo. Nasceu às três e meia da manhã na véspera do Natal de 1946, a Clarice de três nomes, e nasceu preta, embora fosse filha de pai e mãe branquíssimos, ele descendente de italianos e ela espanhola. A mãe não teve dúvidas de que houvera uma troca ali e de que seu bebê devia estar nos braços de alguma outra parturiente naquele hospital do Brás, bairro da capital paulista.

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Precisava agir rápido para desfazer o engano. Mas o rápido daquele tempo tinha outra ordem de urgência. Esperou amanhecer para deixar o hospital, pegou um ônibus e foi encontrar o marido na carpintaria onde ele trabalhava. Precisaria dele para ajudá-la na destroca das crianças; precisariam, ambos, esperar até o fim do expediente dele para irem em bicicleta resolver a questão. Nesse ínterim de quase meio dia, a menina preta que não tinha nome e nem genealogia foi amamentada por uma ama de leite. Adotada pelas enfermeiras, foi batizada simbolicamente como Natalina, em referência à efeméride do dia seguinte. Quando pai e mãe chegaram, Natalina estava branca. Sua negritude não era alta concentração de melanina, e sim falta de oxigênio – nascera sufocada, com o cordão umbilical enroscado no pescoço. Assim que a criança abriu os olhos, naquele mesmo dia, a mãe se reconheceu neles imediatamente: Natalina tinha na íris as mesmas pintinhas escuras que ela. Era, sim, sua filha, e então podia chamá-la pelo nome sonhado de antemão: Maria Josefa.

Clarice Berto

O nome fora pensado à revelia do pai, que já tinha gozado o privilégio de escolher Flávio para nome do primogênito. Aquilo de Maria Josefa, Zefinha, não lhe caía bem, contudo, e quando registrou a filha no cartório, disse ao escrivão: Clarice é o nome dela. A escolha foi secreta. A mãe só descobriu que a filha não tinha o nome que lhe dera quando a levou, cerca de um mês depois do registro, a se consultar num centro de puericultura. A recepcionista chamava todas as crianças, menos sua Maria Josefa. O salão de espera se esvaziava e nada de o nome ecoar. E Maria Josefa Berto, moça, não vão chamar? Berto? Deixa eu ver... Berto...Berto... Não, com esse sobrenome não temos Maria Josefa, só Clarice. Começava, então, a miríade de histórias curiosas de Clarice Berto, que, ainda bebê (e se falasse), já poderia contar que tinha sido preta, Natalina e Maria Josefa, e que era natural que tudo sucedesse assim, fantasticamente, uma vez que fora batizada sob os auspícios da xará Lispector, inventora de grandes histórias.

Boemia modernista

Clarice nasceu no Brás, mas passou a juventude em São Caetano, região da Grande São Paulo. Começou a frequentar o centro da capital quando foi estudar psicologia na Universidade de São Paulo (USP), cujo campus, à época, ficava na rua Maria Antônia. Conheceu um grupo de boêmios intelectuais por ali – todos bem mais velhos que ela – e nele se amalgamou. Estavam para cima e para baixo juntos, nas boates, cafés, teatros e cinemas da cidade que ainda conservava um ar europeu na década de 1960, uma Paris latina. Depois Clarice começou a trabalhar na Light, antiga companhia de luz paulistana que ficava numa das esquinas do Viaduto do Chá, e para São Caetano ela só voltava para dormir – quando muito, porque às vezes voltava, mas dormir, não dormia. Os boêmios apareciam em sua casa na boca da noite e esperavam por ela numa esquina. Clarice, que nem sempre era autorizada pelos pais a sair, pulava a janela do quarto, encontrava os amigos, se espraiava na noite com eles, voltava às quatro da manhã, escuro ainda, pulava a janela de novo, deitava-se e dormia durante o que lhe restava de breu.

O dia era útil para planejar a noite.

Foi com esses amigos que Clarice conheceu o bar da Associação dos Amigos do Museu de Arte Moderna (AAMAM), também chamado de clubinho, uma confraria de intelectuais fomentada pelo ítalo-brasileiro Francisco Matarazzo Sobrinho (1898-1977), o Ciccillo Matarazzo, in- dustrial e mecenas criador do MAM, em 1946, e da Bienal Internacional de Arte de São Paulo, em 1951. Naquele bar, que teve sua primeira sede no prédio dos Diários Associados, na rua 7 de abril, no centro, Clarice Berto fincaria as raízes de suas histórias mais duradouras.

Nos copos em que ela bebia bebiam também o pintor Di Cavalcanti e o crítico de cinema Paulo Emílio Sales Gomes; nos sofás em que se sentava e desfiava a vida e ouvia a dos amigos sentavam-se o músico Silvio Caldas e a escritora Lygia Fagundes Telles; pelo chão acarpetado por onde passava cada vez que visitava o bar, andavam também os políticos Ulysses Guimarães e Jânio Quadros.

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E a porta que Clarice cruzava sempre que desejava encontrar a boemia reunida era a mesma porta que cruzava Roberto Fonseca, professor de Direito Internacional da USP. Uma pessoa chatíssima – pensava Clarice, mulher dada às piadas, ao humor expansivo e à exuberância das roupas, traços salientes que contrastavam com a presença calada e sóbria de Roberto. Mas a força de uma chuva a fez mudar de opinião.

Da chatice ao kabuki

Numa noite de 1985, mesmo ano em que conheceu Roberto, Clarice passou no bar antes de seguir caminho para a inauguração de uma boate no miolo da cidade. Chegou anunciando aos amigos seu programa para aquela noite. Desde um canto do bar, uma voz emergiu baixa, mas audível: eu também estou indo pra lá. Era a voz do professor. Como chovia muito e ela não tinha sombrinha, ele ofereceu-lhe uma carona sob o seu guarda-chuva. Ele era tão interessante, tão culto, que passamos a noite inteira conversando – relembra Clarice. Na boate, tiraram a moça para dançar, e Roberto, advogando em causa própria, lançou-lhe uma contraproposta: se você for dançar agora vai perder minha apresentação de kabuki. Clarice aceitou a oferta. Roberto tirou os sapatos no meio da festa e entoou uma canção japonesa. Era a última prova que ela precisava para ter certeza de que o professor chatíssimo e calado era, na verdade, um homem tão versátil que foi capaz de entretê-la por muito tempo – por duas décadas, precisamente.

Clarice nunca tivera uma relação assim de longeva. O período máximo com um namorado ou noivo era de um ano, em média. Depois disso, aborrecia-se. Quando mais jovem, passava de um noivado a outro com facilidade. Isso porque, lá pelos anos 60, a virgindade feminina (e só a feminina) ainda era ouro e como tal pre- servada – perdê-la na solteirice provisória era condenar-se à solteirice perpétua e à coabitação na casa paterna até o fim dos tempos. Mulheres solteiras não saíam sozinhas com seus namorados: ou iam acompanhadas por algum parente observador e zeloso, ou ganhavam o status de noiva e assim gozavam certa liberdade.

Clarice não era propriamente uma jovem-padrão de seu tempo. Seu registro oficial diz que nasceu em 1946, mas o que consta em seu histórico factual é que chegara e vivera no mundo como se este já estivesse avançado 50 anos no tempo das liberdades. Nunca quis se casar pela lei nem pela igreja; ignorou desde sempre o peso-ouro da virgindade; estudou e formou-se psicóloga a contragosto dos pais; trabalhou fora e ajudou a criar os filhos do irmão viúvo; escolheu não ter filhos e decidiu coabitar com Roberto desde que cada um tivesse seu

Clarice Berto

próprio apartamento por via das dúvidas. E se antes de Roberto era preciso ter noivo para sair, Clarice boêmia noivava, saía, dançava e fazia tudo o que lhe dava gosto. Quando o rapaz começava a falar em comprar um sobradinho em Itaquera, eu caía fora – ela conta, entre risos. Seus enxovais foram testemunhas da rotatividade nubente. Se o primeiro nome do pretendente começava com a letra E, ela bordava E e C nas toalhas, lençóis e colchas do casal. Desmanchado o noivado, Clarice adaptava a letra do antigo noivo para o próximo – o E perdia uma perna e virava F; o R perdia outra e virava P; o T perdia o telhado e virava I, e quando I não pôde virar W, Clarice desmanchou a letra inteira e bordou uma flor no lugar. Mais prático. E neutro.

Quando Roberto faleceu, em 2006, Clarice não chorou sua morte. Não gosta da importância que as pessoas dão ao transe com velórios e missas póstumas. Ela preferiu chamar os amigos e celebrar com eles no bar do MAM, com feijoada e caipirinha de pinga, as duas décadas de viagens, óperas, leituras, bailes, boemia e gozo ao lado do seu amor mais longevo.

Coração de muitos amores

No início da noite, na sobreloja de um edifício comercial na avenida Ipiranga 324, centro da capital paulista, Clarice inicia o expediente. É ali que funciona, desde 1978, a sede do bar do MAM e onde ela, há quase uma década, empenha seu tempo e gosto de segunda a sexta. Em 2001, logo depois de se aposentar, ela tornou-se presidente da AAMAM e passou a dirigir o bar. Sua administração seria em caráter provisório, até que aparecesse alguém para substituí-la. Não era intenção sua ocupar aquele cargo. Estou esperando esse alguém até hoje (risos) – diz.

Clarice é a senhora loira que às seis em ponto já está sentada à mesa numa das quinas do salão. Quem não a vê nitidamente por trás da persiana de madeira que ladeia a mesa facilmente adivinha que ela está ali: seus colares de conta e correntes, comprados por ela aos metros, aos montes dos marreteiros do centro da cidade e recriados segundo seu gosto, dão sonoras notícias suas quando ela se move. Os anéis estão em todos os dedos e as pulseiras metálicas, argolas finíssimas,

Clarice Berto

cobrem quase um terço de cada antebraço. Os cílios postiços só deixam seus olhos quando ela dorme; a boca, pálpebras e maçãs do rosto não estão nunca pálidas. Os cabelos volumosos são obra sua, corte e tintura. Se dá certo eu não sei – ela brinca. São criações suas também as roupas que veste. Tecidos leves, voais, cores fortes e brilhos. A mãe era filha de ciganos, mas foi Clarice quem herdou os genes da exuberância.

Em seu posto pétreo à mesa dos fundos, Clarice é, ela mesma, peça necessária e insubstituível do bar forrado com carpete vermelho, mobiliado com móveis antigos e originais de Volpi, Aldemir Martins, Clóvis Graciano, Maria Leontina e Heitor dos Prazeres decorando as paredes, tal como na confraria em suas origens, há quase sete décadas. Clarice Berto lê e borda em seu canto enquanto conserva, silenciosamente, um pedaço importante da história da arte moderna brasileira. Quando os clientes aparecem, vão imediatamente àquele rincão cativo da patrona cumprimentá-la com uma deferência respeitosa e, ao mesmo tempo, íntima. Ela conhece os habitués pelo nome,

e estes a conhecem pelas histórias e casos de bar que ela divide com todos. Quando não está no clubinho, Clarice Berto está em seu apartamento, e mesmo ali, oculta entre as paredes de concreto, ela se faz encontradiça. Os três corações feitos de papel rosa e prata colados na janela do décimo primeiro andar do edifício Louvre, centro de São Paulo, indicam que lá vive a mulher das artes e da boemia. Os corações são os amores fraternos que Clarice cultivou à mesa do bar, entre gente querida, copo na mão e humores etílicos irmanando homens e mulheres. Ela faz questão de materializar e recordar cada um deles. Meu bar, meus amores, ela diz, sentada à mesa circular de madeira que, entre tantas outras mesas que antecederam aquela, serviu como porto de chegada para novos corações, tantos que não caberiam nem em mil janelas.

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