Renata Kott
L'ultimo Bicchiere di Vino
As cinzas de um grande amor não se sepultam sem um cuidado comezinho. Às cinzas de um grande amor, antes de enterrá-las, de lançá-las ao ar ou na água, acrescentam-se pequenezas que lhes restaura a temperatura perdida com a ausência física: um beijo, uma carícia, o murmúrio de uma frase íntima que, em vida, só dizia respeito ao casal. O grande amor é das ordinariedades, das óperas ouvidas por horas na sala de estar sentados no sofá, entre tenores, sopranos e barítonos, as mãos dadas e a vida suspensa; o grande amor é das conversas amenas, do vinho à tarde, do almoço preparado juntos, da paz sedimentada →
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com os anos, do frango com manteiga que incensa e abençoa a casa no fim de semana, dos bilhetes apaixonados escritos em folhas de cheque e papel-rascunho. Por isso, as cinzas de um grande amor não se sepultam sem um cuidado comezinho. Em termos físicos, o volume das cinzas é inversamente proporcional ao que era sua presença em vida: as cinzas cabem num saquinho pequeno, como esses de supermercado, e podem ser deixadas em qualquer canto sem chamar a atenção. Mas quando o saquinho cheio de pó é aberto, emerge dele a lembrança gorda, maciça e onipresente do que foram aqueles anos vividos amalgamado à vida do outro. E aí começa uma outra vida: a de quem, tendo permanecido na Terra, espera em segredo o dia em que suas cinzas se juntarão às cinzas do grande amor. →

Como se nunca
Renata Kott despediu-se do marido Rosito à porta de casa antes de ir trabalhar. Insistiu com ele que entrasse no carro e que a acompanhasse naquela tarde, mas ele não quis. Insistiu de novo. Não quis, disse que queria ficar e assistir à abertura dos jogos olímpicos daquele dia 13 de julho de 2007. Quando Renata segurou a mão de Rosito e se despediu como numa ocasião qualquer, sentiu que daquela vez não era como em uma ocasião qualquer. Reverberou nela um amor e ternura indescritíveis, e se o sentimento, naquela hora, tivesse emitido um som, o som seria o de um cadeado sendo destravado no exato momento em que soltaram as mãos, ela desde dentro, e ele desde fora do carro. Cloc!
Foi a mesma sensação que Renata teve quando conheceu Rosito, 25 anos antes, numa ópera no Teatro Municipal de São Paulo. O descendente de italianos Pedro Aldo Rosito gritava Bravo, bravíssimo! para a interpretação dos cantores na apresentação de Tosca, de Giacomo Puccini; batia palma e se emocionava mais que a média da plateia. Um homem baixinho e exagerado. →
E um encanto por isso mesmo. À saída, os dois foram apresentados por amigos em comum. Nem bem trocaram duas palavras e Renata, 32 anos, recém-viúva do primeiro marido, pai dos seus três filhos, já sabia que amava aquele estranho 37 anos mais velho que ela. Cloc! Travara-se o cadeado. Coisa de outros tempos. Era como se o amor entre eles nunca tivesse nascido porque sempre existiu. →

Transborda
As quase duas décadas e meia que Renata e Rosito viveram juntos desdobraram as abas do amor atemporal entre os dois e só fizeram o sentimento crescer. Tanta coisa pra contar a esse respeito. Mas basta uma: a adoração do casal se estendeu às duas famílias que já haviam constituído antes, em especial à de Renata, que tinha consigo os três filhos ainda pequenos, moleques de bermuda e cara suada de tanto correr e pular. Com eles os dias eram mais apressados, cheios de trabalho pra receita alcançar a despesa – moleques comem muito, tudo e sempre – de responsabilidades e de um barulho bom de crianças brincando. Rosito cuidou dos meninos como se fossem seus. Desvelou-se por eles, ajudou a criá-los, preparou-lhes muitos frangos com manteiga, berinjelas à milanesa e defendeu-lhes a honra – e a casa – quando peitou o síndico e os condôminos que queriam expulsar mãe e filhos do prédio por conta das bagunças que os meninos aprontavam. Rosito conhecia o potencial da trinca – eram bagunceiros mesmo – mas levava no coração a boa e legítima complacência do amor paternal: ora, são só garotos gastando a →
energia que têm. Seu Rosito era pai e melhor amigo de todos. De Renata era inteiro marido, embora o avançado da idade e experiência lhe credenciassem também como pai da esposa. É que quando o amor transborda, a forma dele é o que menos importa. →
Revés
Cloc! Destravou-se o cadeado. O tempo ficara suspenso por um milésimo e a vida ao redor dele também. Renata sentia. Era de novo a noite de 1984, da Tosca de Giacomo Puccini no Teatro Municipal, déjà vu, amor atemporal, mas agora era ao revés, e já nada mais podia ser feito. Rosito e a esposa se despediram através da janela aberta do carro. Ela engatou a primeira e partiu. Ele sairia à rua instantes depois, não se sabe até hoje se para jogar na loteria – costume seu – ou se para visitar o enteado no estúdio onde trabalhava ali pelas redondezas. Quando atravessou a rua, seu Rosito acionou a chave que esperava ser girada para destravar o cadeado. Um ônibus o atropelou e feriu seriamente. Passou três meses e meio na UTI do hospital entre melhoras e quedas, lucidez e inconsciência. Renata não deixava de vê-lo, duas vezes ao dia, todos os dias, três meses e meio, até o dia em que o elo material se desfez. →

Leve, memorável e ordinário
Renata buscou as cinzas do marido no crematório da Vila Alpina, em São Paulo. E quando o teve em mãos, foi assim: estava chovendo esse dia, um dia feeeeio. Aí fui ao crematório e pedi as cinzas dele. Me entregaram numa sacola branca pequena, bonitinha, com uma alça. Abri o porta-malas do carro e coloquei a sacola lá. Quando estava chegando quase na saída do estacionamento eu pensei: ahhh, coitado, vai no porta-malas? Ah, não, vem cá! Aí abri o porta-malas, peguei a sacola e coloquei ela no chão do carro. Andei mais um pouquinho com o carro e pensei: ahh, não, no chão não! Vem cá, senta no banco, vai... (risos). Quando cheguei em casa, coloquei ele no porta-malas de novo porque deixo meu carro em estacionamento e vai saber o que os manobristas podiam fazer com a sacola. Depois pedi pro meu filho guardar as cinzas numa estante no galpão (que serve de estúdio para ele, que é cenógrafo). Ele dizia que era o fiel guardador das cinzas. Aí meu filho colocou a sacola na estante e deixou lá. Veja, o Rosito morreu em outubro e ficou novembro e dezembro lá na estante. Aí pensei que precisava →
enterrar as cinzas logo. Tive a ideia de enterrar ele lá em Paúba (litoral paulista), um lugar lindo. Levei o Rosito pra praia. Lá mora a sogra do meu filho. Na primeira noite o Rosito dormiu no carro. No dia seguinte, fui na casa da sogra do meu filho. Aí eu perguntei a ela se não podia deixar o Rosito do lado da churrasqueira por uns instantes (risos) – ninguém era obrigado a aguentar as cinzas do meu marido, né? Aí ela disse: de jeeeeito nenhum! Seu Rosito não vai ficar do lado de fora! Ele vai ficar aqui – e colocou a sacola de cinzas na mesa de centro dela (risos). Finalmente, no fim da tarde, a gente foi enterrar ele na praia – isso porque o Rosito já tinha passeado até, né? (risos). Como italiano adora vinho, e o Rosito adorava, comprei uma garrafa de vinho e despejei ela dentro do saco de cinzas (risos). Mas era vinho Chapinha, aquele ruim, de 5 reais, sabe? (risos). Ahhh, não ia comprar um vinho caro, né? Era só pra ter o cheiro do vinho, o que valia era a intenção. Daí meu filho subiu nas pedras, subiu, subiu e despejou o Rosito lá.
(Pausa)
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Qualquer dia eu vou pegar as cartas de amor que a gente trocava e vou lá, vou ler uma por uma e depois queimar tudo no tempo, deixar ir embora pro universo. Tem cada carta tão linda... quer ver uma?.
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